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quarta-feira, setembro 28, 2011

Autobiografia escolar (Parte III) O Currículo Oculto

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Com dez anos eu já tinha a certeza do que queria ser: professora de Português ou de História. Pois… é que entretanto eu já sabia que para ser médica ou enfermeira teria de ser uma excelente aluna a matemática…

Com dez anos eu era suficientemente autónoma para deslocar-me à escola sem a companhia de um adulto, inclusive, fiz a minha matrícula sozinha pois o meu pai não pôde acompanhar-me[i]. Fui colocada na Escola Preparatória de Alfornelos e desta vez ia com muito medo de não conseguir adaptar-me. Parecia-me muito difícil… como lidar com tantos professores e tantas disciplinas? Como saber o que esperar dos professores e saber o que tantos professores diferentes esperam de nós? Sendo estes os meus principais receios, a realidade que encontrei mostrou-se bem mais complicada… Na altura, os pais não podiam escolher as escolas. As matrículas teriam de ser feitas segundo a área de residência dos alunos e eu pertencia definitivamente a Alfornelos, apesar das tentativas falhadas de matrícula na Escola Preparatória Roque Gameiro. Nenhum dos meus colegas da escola primária havia ido para aquela escola. Eu fui colocada numa turma maioritariamente de repetentes. À exceção da Carla, que viria a ser a minha melhor amiga (uma amizade que dura há mais de vinte anos) todos os colegas, rapazes e raparigas eram mais velhos que nós. Recordo-me que tinha colegas com 13 e 15 anos nos 1.º e 2.º anos do ciclo. Na altura, o sexto ano era a escolaridade mínima obrigatória pelo que estes jovens ficavam retidos até completarem o segundo ciclo ou na melhor das hipóteses poderem desfrutar de uma passagem administrativa por causa da idade.

Lembro-me de pouca coisa deste período escolar, assim, tive de recorrer à minha amiga Carla para me ajudar a recordar alguns pormenores. Infelizmente, a memória da minha amiga também fraquejou neste sentido…ainda assim, recordo que eu e a Carla éramos simultaneamente as mais novas e melhores alunas da turma. Olhando hoje para aquele contexto, tenho dúvidas se as nossas notas se prendiam com um coeficiente de inteligência superior ao dos outros colegas… Na altura estava em vigor uma filosofia que pretendia combater o insucesso escolar. A lógica era juntar alguns alunos com bom aproveitamento a alunos de aproveitamento insuficiente para estimular a aprendizagem e motivação da maioria do grupo. Foi nesse contexto que eu e a Carla fomos integradas naquelas que eram apelidadas as “piores turmas da escola”. Naturalmente, duas crianças que nunca tinham sido repetentes, assíduas, pontuais e respeitadoras das regras e sem dar problemas ao nível da disciplina, acabariam por, de alguma maneira, cair nas preferências dos professores[ii], bem como seriam apelidadas pelos restantes como marronas.

Em termos de relação pedagógica recordo apenas uma pequena conversa que mantive com a minha professora de português, Hélia Correia. Ao descobrir que tinha uma professora escritora perguntei-lhe se poderia ler um livro dela e não entendi a sua recusa quando afirmou que eu não deveria ler os livros dela porque eram livros para adultos. Pois se eu li a coleção completa da vida sexual aos seis/sete anos de idade, porque não poderia ler os livros da Professora Hélia Correia?? Não lhe disse isso, é claro. Fiquei calada e pensei: um dia terei idade e talvez até escreva um livro!

Recordo ainda que a disciplina que eu menos gostava era a de Trabalhos Oficinais. Era excelente aluna em Educação Física e destacava-me no futebol e no basquetebol, para o qual contribuía a minha estatura física, bastante desenvolvida para a idade. Aparte disso, a matemática fez-se com dificuldades mas com sucesso.

E o que se passava com a maioria dos alunos da turma? A maioria, como foi já foi referido, tinha entre 13 a 15 anos, oriundos de famílias de um nível socioeconómico muito baixo. Algumas crianças viviam no limiar da pobreza. Diversas vezes dividi o meu lanche. Algumas vezes roubaram-me as senhas de almoço. Moradores dos Bairros das Fontainhas e da Azinhaga dos Besouros, paredes-meias com a escola, entre Alfornelos e a Pontinha; jovens com uma taxa de insucesso escolar elevadíssima e, embora não fosse a maioria, grande parte dos meus colegas era de origem cabo-verdiana[iii]. Vários/as colegas da minha turma já fumavam e alguns fumavam haxixe. Eu não sabia que era haxixe… para mim era droga e não poderia, nem saberia, distingui-la de qualquer outro tipo de droga. Costumavam fumar atrás do pavilhão de ginástica e faltavam muito às aulas. O sexo prematuro era também normal entre a maioria daqueles jovens. Sei de todas as histórias que duas das minhas colegas mais velhas me contavam em jeito de tu és burra... não sabes nada[iv]. Os namoros delas faziam-me alguma confusão… para além de sexualmente precoces relacionavam-se com rapazes muito mais velhos, de 18 e 19 anos, que as esperavam à porta da escola. Durante os dois anos que estive na Escola Preparatória de Alfornelos, hoje Escola Básica 2/3, houve um caso de gravidez entre uma das crianças… ela tinha apenas 10 anos, mas não era da minha turma. No segundo ano do ciclo, não sei por que razão, a minha amiga Carla mudou de turma e eu fiquei muito triste. A nossa amizade manteve-se, íamos juntas para a escola, por uma longa estrada que na altura nada mais tinha do que um pequeno e estreito passeio, rodeada nas bermas por campos desertificados, junto à Quinta da Falagueira. Contudo, foi neste período que me aproximei mais das minhas colegas de turma mais velhas. Às vezes ia almoçar à casa de uma delas que ficava nas Fontainhas e foi nessa altura que conheci os bairros da Venda Nova. Foi nessa altura também que me terei tornado uma pessoa mais tolerante. Afinal, apesar de viver numa família humilde, eu era considerada rica e betinha pelos meus colegas que viviam em bairros degradados, em quartos improvisados entre o espaço de uma sala e um sítio para cozinhar. Eu vivia numa casa de betão, na Falagueira, vestia roupas vistosas e não me faltava o lanche, nem as senhas de almoço. Não me lembro do nome destas duas colegas com quem me relacionei no segundo ano, mas sei que as duas deixaram de estudar quando completaram o ciclo (na altura a escolaridade obrigatória), uma casou aos 15 anos e a outra, a última vez que soube dela, tinha um grave problema de toxicodependência. Eu não me perdi… fiz o ciclo preparatório e aos 12 anos cheguei à Escola Secundária da Falagueira.



[i] Os meus pais tal como tantas outras famílias atuais não tiveram uma posição verdadeiramente presente durante todo o meu percurso escolar. Creio que no entender dos dois eu estava bem entregue aos professores e à escola que encaravam como os quase exclusivos atores responsáveis pela minha aprendizagem, para além de mim própria. Assim, bastava que me vissem fazer os trabalhos da escola e que no fim de cada trimestre eu apresentasse avaliações positivas.

[ii] Por outras palavras nós éramos as clientes ideais da classe docente e da escola (BECKER cit. GOMES C. 1987).

[iii] Será que é correto partirmos do princípio que um aluno oriundo de uma classe desfavorecida é sinónimo de aluno problemático, indisciplinado e condenado a reprovar sistematicamente? (CANÁRIO R. 2003). A experiência diz-me que não é determinante. Mas o contexto social e familiar poderá provocar o agravamento ou não do aproveitamento que é esperado dos alunos. Não poderão a escola e os professores desempenhar um papel determinante para inverter as situações menos positivas? Não estaria a maioria dos professores daquela escola, à espera que um cabo-verdiano da Azinhaga dos Besouros ou das Fontainhas, chumbasse o ano? Neste contexto em que a escola está inserida (ainda atualmente), não serão os professores altamente influenciados pelo efeito de Pigmalião, esperando que se concretize exatamente aquilo que imaginaram ou idealizaram?

Serão os professores imunes às considerações que o efeito de pré-informação por parte de outros docentes possa provocar, mesmo antes de conhecer uma turma ou um determinado aluno? A experiência, sobretudo como formadora, diz-me que não. Agora, será necessário que a classe docente consiga ultrapassar a profecia de estilo Murphiano segundo a qual tudo o que pode correr mal corre mal com toda a certeza. E como ultrapassar esse estigma afeto a um determinado perfil de estudante? Não permitindo que os estereótipos tomem conta de nós e nos impeçam de olhar a realidade tal como ela é, envolvendo os alunos, os pais e a comunidade educativa; levantando as necessidades especiais, concretas e únicas de cada indivíduo e trabalhando sobre e para as pessoas e não para os grupos - talvez… Parafraseando o Professor Rui Canário, deixando de encarar o aluno como mero objeto pedagógico.

A própria metodologia de ensino é concebida tendo como ponto de partida o perfil do cliente ideal (BECKER cit. GOMES C. 1987). Quando surgem alunos que fogem ao padrão de aluno ideal os métodos e a forma de transmissão de conhecimentos habitualmente utilizados pelos professores, são colocados em causa e perante a falha na prossecução dos objetivos alguns professores não sabem como reagir, adotando em muitos casos, posições de descrença e por vezes de conflito com os alunos em questão, fazendo uso da autoridade e legitimidade que o sistema lhe confere.

[iv] Inquestionavelmente aprendi muito sob esta forma de currículo oculto informal, passado entre os alunos. Durante o ciclo, nunca tivemos Educação Sexual. Só na secundária assistimos a umas conferências e ações de sensibilização subordinadas ao tema da sexualidade e planeamento familiar. Cá por casa, havia livros que permaneceram escondidos até aos meus 16 anos e ninguém falava de sexualidade. O Professor Walo Hutmacher (1992) descreve desta forma o conceito de Currículo Oculto: “tudo o que acontece naturalmente na escola, o que há de mais evidente, de mais comum e tradicional, o que se tornou tão familiar que já não nos chama a atenção. Outros autores classificam o currículo oculto como: “resultados da escolarização não previstos ou não pretendidos explicitamente, subproduto do currículo académico, conjunto de fatores modeladores de aprendizagens não académicas e não mensuráveis nos alunos, contexto social no qual tem lugar a escolaridade, e que implica que os alunos alcancem modos de pensar, normas sociais e princípios de conduta, dada a sua prolongada exposição a esse ambiente.” (GONÇALVES M.F. 1997). Por sua vez, o currículo oculto passado pelos educadores e professores, inclui diversos valores; por exemplo: religião, preconceitos de cor e de classe, regras de comportamento, etc. que a escola pode ensinar, mesmo sem mencioná-los em seu currículo.

domingo, setembro 18, 2011

Autobiografia escolar (Parte II) O puxão de orelhas

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Eu gostava de tudo… de Português, de Meio Físico e Social e, até certo ponto, de Matemática. Não me custava fazer ditados, cópias de textos ou composições, contudo, o meu aproveitamento a Matemática foi profunda e definitivamente abalado no terceiro ano do ensino básico. Um problema de saúde e um internamento hospitalar durante quase um mês, foi o suficiente para eu nunca mais recuperar nessa disciplina. O mês que estive ausente foi um mês de grandes avanços no programa de matemática e eu fui incapaz de recuperar. Todos aqueles problemas com contas de multiplicar e de dividir eram demasiado confusos e chegando ao final do primeiro período a professora não podia voltar atrás para me explicar toda a matéria que eu perdi[i]. A professora sugeriu então que eu tivesse apoio com alguma explicadora mas infelizmente os meus pais não podiam suportar essa despesa. A minha mãe conhecia os números e não se atrapalhava nas contas mas não sabia como explicar-me e o meu pai (…) como encarregado de educação só queria ver as notas no fim de cada trimestre e assinar os testes, certificando-se que o meu aproveitamento era positivo. É claro que por diversas vezes o meu pai me acusava de não estudar o suficiente para matemática… mas eu simplesmente não conseguia e terá sido aqui, descobri agora, que terá nascido a minha aversão aos números.

Quanto ao comportamento, sempre fui uma aluna quase exemplar. Constam nas folhas das minhas avaliações alguns adjetivos como faladora, mas sempre interessada e trabalhadora. O facto de falar demais valeu-me um belo puxão de orelhas… algo que me doeu muito e que fez a professora arrepender-se da atitude que tomou. É que nesse dia eu estava com uma otite e aquele puxão de orelhas doeu-me bastante, de tal forma que não consegui controlar o choro. Ao aperceber-se do sucedido, a professora Elsa ficou muito aflita e pediu-me desculpa… Foi também a primeira vez que fui repreendida daquela maneira, como tal, doeu duplamente. Os castigos da professora Elsa nunca iam além do puxão de orelhas e das orelhas de burro. O Vítor, o tal menino que chorou no primeiro dia de aulas, era quase sempre a vítima das orelhas de burro por ser muito brincalhão e distraído. Era portanto, motivo de chacota por parte de toda a turma (éramos uns trinta), sempre que ficava de costas viradas para a turma, nariz de frente à parede e orelhas de burro feitas de cartolina. Apesar desses repetidos episódios, o Vítor era querido por todos pois trazia os melhores, maiores e mais bonitos bolos de aniversário. O pai dele era pasteleiro. De resto, a professora tinha um ponteiro de madeira enorme, parecido com um taco de bilhar, mas felizmente esse ponteiro só servia para sinalizar o que estava escrito no quadro.

Da organização da sala e da escola pouco recordo… Lembro-me que utilizávamos muito papel pardo, o mesmo que era usado na mercearia (para embrulhar alguns consumíveis) e que à hora do lanche nos davam um pacote de leite com chocolate. Ao fundo da sala amontoavam-se paletes de leite com chocolate perto das estantes e armários onde era guardado o material escolar. Da sala do primeiro ano não me lembro de nada em especial, mas recordo que a sala onde estive do segundo ao quarto ano tinha um estrado, em cima do qual estava a secretária da professora e por cima do quadro preto estava um crucifixo[ii]. Só mais tarde, viria a compreender a razão daquele crucifixo e daquele estrado. Na altura, tudo aquilo me parecia perfeitamente natural.

Eu não me importava de ser chamada ao quadro, desde que não fosse para escrever a tabuada ou resolver problemas, de modo que nas horas de matemática eu tentava sempre portar-me muito bem e não dar nas vistas.

Em 1984, terminava um ciclo da minha vida, de todos os meus colegas e da professora. No último dia de aulas da quarta classe, fizemos uma festa e todos sem exceção choraram, inclusive a professora[iii]. Para mim esse dia foi muito difícil. Significava não só o adeus aos meus colegas e amigos de classe, como o adeus a uma professora que me acompanhou durante os quatro anos mais importantes da minha vida - os anos em que aprendi a ler e a escrever, que fiquei a conhecer um pouco mais de mim e do espaço em que vivia. Era chegada a altura de partir para uma nova escola, um novo mundo, com muitas disciplinas e vários professores. Algo de muito especial nos ligava à professora Elsa e ela ficou para sempre na minha memória como uma figura definitiva, inclusive na formação do meu carácter[iv]. Lembro-me como a professora Elsa se emocionou quando pela primeira vez nos explicou o que era o 25 de Abril. Nos anos 80 essa memória estava bem presente na mente das pessoas, para o bem e para o mal… No caso da professora Elsa, essa era uma memória feliz. Em casa, o meu pai reforçou a mesma ideia e pendurou na sala o diploma que a Câmara da Amadora ofereceu às crianças do Concelho que participaram no concurso de desenho sobre os 10 anos do 25 de Abril.



[i] Destaca-se neste aspeto a dificuldade presente em muitos dos professores na gestão das diferentes aprendizagens bem como na gestão dos casos de insucesso. Por outras palavras, o grupo é grande, a matéria foi dada e o programa tem de ser cumprido.

[ii] Resquícios da Ditadura que havia terminado poucos anos antes.

[iii] Essa relação social inédita, que surgiu com a invenção da classe, funcionou na perfeição. Funcionou a relação pedagógica e os seus canais de comunicação (CANÁRIO R. 2001). Nunca houve notícia de uma queixa contra a professora e a minha primeira classe, que me acompanhou até aos dez anos, funcionou como uma forma de socialização com outros miúdos bem como proporcionou o contacto com outras realidades diferentes daquelas que conhecia na minha casa, na minha rua e no meu bairro.

[iv] Posso afirmar sem qualquer dúvida, que a Professora Elsa conseguiu cumprir na íntegra, pelo menos no que me diz respeito, a missão que a escola lhe atribuiu de me formar para a cidadania. Esta é aliás, uma das missões do sistema educativo contemporâneo (CANÁRIO R. 2001): A formação do saber estar e do saber ser, vivendo no mundo em verdadeiro gozo da cidadania. Será também por essa razão que nos programas do 1º ciclo nos são entregues tarefas tão simples como escrever um telegrama ou um aviso de receção dos correios. “A escola, enquanto organização social induz nos alunos a aprendizagem de um conjunto de competências suscetíveis de mais tarde serem transferidas, ou recontextualizadas, para outros tipos de organizações sociais em que se integram os adultos” (CANÁRIO R. 2003).

quinta-feira, setembro 15, 2011

Autobiografia escolar (Parte I) Aprender a Ler

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Entrei na escola, no ano de 1980[i], quando completei seis anos de idade, eu não sabia ler nem escrever e não conhecia os números. O meu pai tinha a 4ª classe que tirou na tropa e a minha mãe, natural do Alentejo, nasceu numa família numerosa que não teve possibilidade de lhe conceder oportunidade para estudar. Ainda assim, a minha mãe bem tentou ensinar-me os números, mas eu não quis…

Uma das patroas da minha mãe era professora e eu passava muitas horas com ela enquanto ela preparava aulas e corrigia testes. A Dona Paula, como professora, tentou também ensinar-me as letras e os números, mas eu resisti sempre. Creio que até a D. Paula desistiu de mim.

Sempre recusei que me ensinassem o que quer que fosse antes de entrar para a escola, mesmo quando a minha vizinha do lado gozava comigo. A Sara, minha vizinha, era da minha idade e ela já sabia todas as letras, escrevia o nome dela e contava até mais de dez. A Sara, quando se zangava comigo, costumava chamar-me “burra”. Eu ficava zangada, ainda assim, não permitia que me ensinassem nada. A minha mãe diz que eu respondia frequentemente “Quando for para a Escola a professora logo me ensina”. [ii]

Livros nunca faltaram cá em casa. Os meus pais trabalharam os dois na livraria Bertrand e eu tinha acesso a tudo quanto era literatura, História e banda desenhada. Cheguei a ter uma coleção de cerca de 200 Tintin’s e Spirou’s! Por este motivo, os livros já faziam parte da minha vida, mesmo antes de aprender a ler. A minha mãe conta que eu a partir dos três anos e até entrar na escola, levava sempre um livro atrás de mim, geralmente o Tintin (o único que eu podia usar) e que, olhando para as imagens inventava enredos completos entre o Tintin, o Milú e os gémeos Dupond e Dupont. Comenta a minha mãe que no autocarro, os passageiros assistiam espantados às “minhas leituras” e perguntavam como é que eu, tão pequena, já sabia ler. A minha mãe, respondia sorrindo que o que eu sabia era inventar muito bem.

Recordo-me do primeiro dia de aulas… Foi em Outubro. A escola ficava a apenas 500 metros da minha casa mas a mim parecia-me muito longe. Creio que ia nervosa. Afinal, eu não sabia o que iria encontrar na escola, mas não tinha medo. Cheguei com o meu pai e a Professora estava à porta da sala a receber os pais e as crianças. A professora parecia-me muito alta, era jovem e bonita, tinha uns cabelos pretos muito compridos e olhos verdes. A Professora Elsa perguntou-me então se eu já sabia escrever o meu nome ou contar até dez. Eu respondi que não e o meu pai apressou-se a justificar dizendo que eu simplesmente nunca quis aprender e sempre respondia que quando chegasse à escola a professora é que me iria ensinar. Recordo que a Professora me disse: “Então, Ana, mas agora vais aprender?” E eu respondi que sim, mas estava mais interessada em observar um colega que chorava abraçado à mãe e dizia que não queria ir para a escola. Entramos por fim na sala e desse dia pouco mais recordo. Ficou a imagem da Catarina a chorar porque tinha feito chichi nas calças… A Catarina acabaria por ser a minha melhor amiga durante os quatro anos seguintes até porque descobrimos que vivíamos perto uma da outra. A Catarina já sabia ler e escrever… A mãe dela até queria que ela transitasse diretamente para a segunda classe, mas o pedido não foi aceite[iii].

Guardo até hoje, num dossier muito velho e com folhas de papel pardo amareladas alguns dos exercícios e composições que fiz durante a escola primária. Guardo igualmente, todas as avaliações da minha vida escolar, o que me facilitou bastante esta autobiografia, já que a minha memória dos primeiros anos de escola estava muito desvanecida.

Os primeiros exercícios que fiz eram muito simples: pintar, picotar e recortar. Antes de aprender as primeiras letras escrevia sobre linhas tracejadas. O objetivo era não levantar a caneta do papel até terminar os caracteres que estavam desenhados. Gradualmente era pedido que escrevesse sozinha. As minhas primeiras letras e números não são muito bonitos… Ao longo dos quatro anos que a Professora Elsa me acompanhou, ela sempre me avaliou como “trapalhona na letra”. Eu nunca tive aquela letra enroladinha e encaracolada característica das meninas… Nunca desisti de fazer como a professora queria, mas na verdade nunca consegui. Ainda hoje tenho uma letra pouco feminina. Aprendi a escrever repetindo ai’s, ui’s e oi’s no papel[iv]. Eu sempre gostei muito da escola e de aprender, mas confesso que era muito aborrecido repetir os números, as letras e as palavras vezes sem fim. Para a Professora nunca estava suficientemente bem.

Rapidamente aprendi a escrever o meu primeiro nome já que este implicava apenas conhecer duas letras. De resto, em Dezembro já sabia ler e escrever. O sucesso foi tal que a minha professora levou-me a uma turma da quarta classe para eu ler um texto. Eu fui apanhada de surpresa, não sabia ao que ia. Só depois percebi que aquela encenação tinha por finalidade mostrar aos meninos da quarta classe que uma menina que havia chegado à escola há três meses já sabia ler melhor que eles. E se isto poderia ser um motivo de orgulho para mim, na verdade foi uma terrível vergonha, pois parece que os colegas mais velhos não apreciaram a demonstração nem o comentário da professora deles, a D. Celeste. O que me parece hoje extraordinário é que eu li, “com todos os pontos e vírgulas” um texto do quarto ano e a experiência, claro está, marcou. Por esta altura, eu quis ensinar a minha mãe a ler, mas não tive muito sucesso. A minha mãe trabalhava por turnos e muitas vezes não estava disponível… Hoje é aposentada e embora eu não tenha desistido de ensiná-la, ela vai-se desculpando com a idade… Acho que, neste aspeto falhei, i.e; a minha mãe toma exatamente a mesma posição que eu assumia antes de ir para a escola!

Aprender a ler mudou tudo na minha vida e este facto justificou também algumas mudanças nas estantes cá de casa. Acontece que logo que aprendia ler comecei a consumir os livros cá de casa, a coleção dos “Porquê’s” e uma coleção sobre a Vida Sexual. Assim que o meu pai descobriu que eu andava a ler os volumes destinados a adolescentes e adultos, os livros desapareceram. Só por volta dos meus quinze anos voltei a descobrir esses volumes, escondidos na última prateleira da despensa cá de casa.

Olhando hoje o meu dossier, os meus desenhos e composições, quase chego a emocionar-me. É verdade que dava muitos erros, tinha a letra feia, mas uma imaginação excelente, divertida e, pelo que escrevia, devia ser uma criança bastante sensível… Os erros, esse pagava-os repetindo a mesma palavra dezenas de vezes.

(Continua)



[i] A crise dos anos 70 que assolou a Europa ainda não tinha chegado verdadeiramente a Portugal. O nosso país vivia o auge de uma verdadeira democratização do ensino, conquistada depois do 25 de Abril, com uma subida exponencial de licenciados nas Universidades Públicas oriundos de classes sociais mais desfavorecidas, ultrapassado que estava o modelo de elite social e cultural. As famílias dos operários nas grandes cidades faziam todos os esforços possíveis para manter um filho na faculdade, oportunidade única para subir na pirâmide social. A ideologia socialista da época tivera por seu turno uma importante influência no sistema de ensino, substituindo e afastando professores associados ao regime do Estado Novo, o que na prática significou a substituição de uma ideologia por outra. Mas o sistema de ensino é isto mesmo em todos os países do mundo. Alimenta e faz respeitar, uma certa ordem social, económica, política e cultural (BARROSO J. 1996).

[ii] Não me prejudicou grandemente esta minha recusa em aprender fora do contexto escolar. Talvez tenha sido sorte, ou talvez demonstrasse apenas a minha recusa em deixar de ser criança já que contra a escola eu não tinha nada; bem pelo contrário, creio que eu legitimava a escola como única responsável pelas minhas aprendizagens. Como afirma Freinet (1978) “Nada de aprendizagem prematura, dir-vos-á o caçador. Um cão novo demais fatiga-se e desencoraja-se. As suas reações e o seu faro correm o risco de ficar perturbados para sempre.” Olhando para as crianças dos nossos dias e em particular para os filhos dos casais amigos eu penso muitas vezes na disciplina que desde os dois anos de vida (às vezes mais cedo) é incutida àquelas crianças. Não podem mexer, não podem brincar com canetas, não podem sujar a roupa. Aprendem os números e as letras na pré-primária e chegam a ser avaliados. Uma avaliação de tal forma prematura que muitas vezes, ao invés de motivar as crianças a aprender, termina muitas vezes na revolta contra a escola e contra os professores. Penso isto e associo ao relato (lido na aula pelo Prof. Rui Canário) daquele jornalista que falava dos filhos que deixa no infantário antes de ir trabalhar, que, ao mesmo tempo que questiona a avaliação precoce dos miúdos não encontra, na sociedade atual, outras alternativas, já que os pais trabalham e os avós também…

[iii] Demonstração clara quanto à forma e organização escolares pela maneira como é concebido o ciclo da aprendizagem, passando para segundo plano as experiências e conhecimentos pré-adquiridos de cada aluno; tentando fazer corresponder à mesma idade um determinado perfil de conhecimentos e rejeitando outliers uma vez que estes são entidades estranhas à norma. (CANÁRIO R. 2001). A tecnologia da classe pressupõe a homogeneidade da turma e a conformidade dos estudantes (BARROSO J. 1996). O pedido desta mãe no sentido de a filha passar diretamente para a 2ª classe irritou claramente a Diretora da Escola que se terá sentido desautorizada. Uma coisa é certa: a criança em questão era verdadeiramente boa aluna e estava de facto adiantada face aos seus colegas de classe. Não sei ao certo como correu o ciclo preparatório da Catarina mas ela acabaria por abandonar a escola antes de completar o 9º ano de escolaridade.

[iv] Típico do sistema de ensino profissional a aprendizagem através de constantes correções até chegar ao efeito/conhecimento ou excelência pretendidos.