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quinta-feira, setembro 15, 2011

Autobiografia escolar (Parte I) Aprender a Ler

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Entrei na escola, no ano de 1980[i], quando completei seis anos de idade, eu não sabia ler nem escrever e não conhecia os números. O meu pai tinha a 4ª classe que tirou na tropa e a minha mãe, natural do Alentejo, nasceu numa família numerosa que não teve possibilidade de lhe conceder oportunidade para estudar. Ainda assim, a minha mãe bem tentou ensinar-me os números, mas eu não quis…

Uma das patroas da minha mãe era professora e eu passava muitas horas com ela enquanto ela preparava aulas e corrigia testes. A Dona Paula, como professora, tentou também ensinar-me as letras e os números, mas eu resisti sempre. Creio que até a D. Paula desistiu de mim.

Sempre recusei que me ensinassem o que quer que fosse antes de entrar para a escola, mesmo quando a minha vizinha do lado gozava comigo. A Sara, minha vizinha, era da minha idade e ela já sabia todas as letras, escrevia o nome dela e contava até mais de dez. A Sara, quando se zangava comigo, costumava chamar-me “burra”. Eu ficava zangada, ainda assim, não permitia que me ensinassem nada. A minha mãe diz que eu respondia frequentemente “Quando for para a Escola a professora logo me ensina”. [ii]

Livros nunca faltaram cá em casa. Os meus pais trabalharam os dois na livraria Bertrand e eu tinha acesso a tudo quanto era literatura, História e banda desenhada. Cheguei a ter uma coleção de cerca de 200 Tintin’s e Spirou’s! Por este motivo, os livros já faziam parte da minha vida, mesmo antes de aprender a ler. A minha mãe conta que eu a partir dos três anos e até entrar na escola, levava sempre um livro atrás de mim, geralmente o Tintin (o único que eu podia usar) e que, olhando para as imagens inventava enredos completos entre o Tintin, o Milú e os gémeos Dupond e Dupont. Comenta a minha mãe que no autocarro, os passageiros assistiam espantados às “minhas leituras” e perguntavam como é que eu, tão pequena, já sabia ler. A minha mãe, respondia sorrindo que o que eu sabia era inventar muito bem.

Recordo-me do primeiro dia de aulas… Foi em Outubro. A escola ficava a apenas 500 metros da minha casa mas a mim parecia-me muito longe. Creio que ia nervosa. Afinal, eu não sabia o que iria encontrar na escola, mas não tinha medo. Cheguei com o meu pai e a Professora estava à porta da sala a receber os pais e as crianças. A professora parecia-me muito alta, era jovem e bonita, tinha uns cabelos pretos muito compridos e olhos verdes. A Professora Elsa perguntou-me então se eu já sabia escrever o meu nome ou contar até dez. Eu respondi que não e o meu pai apressou-se a justificar dizendo que eu simplesmente nunca quis aprender e sempre respondia que quando chegasse à escola a professora é que me iria ensinar. Recordo que a Professora me disse: “Então, Ana, mas agora vais aprender?” E eu respondi que sim, mas estava mais interessada em observar um colega que chorava abraçado à mãe e dizia que não queria ir para a escola. Entramos por fim na sala e desse dia pouco mais recordo. Ficou a imagem da Catarina a chorar porque tinha feito chichi nas calças… A Catarina acabaria por ser a minha melhor amiga durante os quatro anos seguintes até porque descobrimos que vivíamos perto uma da outra. A Catarina já sabia ler e escrever… A mãe dela até queria que ela transitasse diretamente para a segunda classe, mas o pedido não foi aceite[iii].

Guardo até hoje, num dossier muito velho e com folhas de papel pardo amareladas alguns dos exercícios e composições que fiz durante a escola primária. Guardo igualmente, todas as avaliações da minha vida escolar, o que me facilitou bastante esta autobiografia, já que a minha memória dos primeiros anos de escola estava muito desvanecida.

Os primeiros exercícios que fiz eram muito simples: pintar, picotar e recortar. Antes de aprender as primeiras letras escrevia sobre linhas tracejadas. O objetivo era não levantar a caneta do papel até terminar os caracteres que estavam desenhados. Gradualmente era pedido que escrevesse sozinha. As minhas primeiras letras e números não são muito bonitos… Ao longo dos quatro anos que a Professora Elsa me acompanhou, ela sempre me avaliou como “trapalhona na letra”. Eu nunca tive aquela letra enroladinha e encaracolada característica das meninas… Nunca desisti de fazer como a professora queria, mas na verdade nunca consegui. Ainda hoje tenho uma letra pouco feminina. Aprendi a escrever repetindo ai’s, ui’s e oi’s no papel[iv]. Eu sempre gostei muito da escola e de aprender, mas confesso que era muito aborrecido repetir os números, as letras e as palavras vezes sem fim. Para a Professora nunca estava suficientemente bem.

Rapidamente aprendi a escrever o meu primeiro nome já que este implicava apenas conhecer duas letras. De resto, em Dezembro já sabia ler e escrever. O sucesso foi tal que a minha professora levou-me a uma turma da quarta classe para eu ler um texto. Eu fui apanhada de surpresa, não sabia ao que ia. Só depois percebi que aquela encenação tinha por finalidade mostrar aos meninos da quarta classe que uma menina que havia chegado à escola há três meses já sabia ler melhor que eles. E se isto poderia ser um motivo de orgulho para mim, na verdade foi uma terrível vergonha, pois parece que os colegas mais velhos não apreciaram a demonstração nem o comentário da professora deles, a D. Celeste. O que me parece hoje extraordinário é que eu li, “com todos os pontos e vírgulas” um texto do quarto ano e a experiência, claro está, marcou. Por esta altura, eu quis ensinar a minha mãe a ler, mas não tive muito sucesso. A minha mãe trabalhava por turnos e muitas vezes não estava disponível… Hoje é aposentada e embora eu não tenha desistido de ensiná-la, ela vai-se desculpando com a idade… Acho que, neste aspeto falhei, i.e; a minha mãe toma exatamente a mesma posição que eu assumia antes de ir para a escola!

Aprender a ler mudou tudo na minha vida e este facto justificou também algumas mudanças nas estantes cá de casa. Acontece que logo que aprendia ler comecei a consumir os livros cá de casa, a coleção dos “Porquê’s” e uma coleção sobre a Vida Sexual. Assim que o meu pai descobriu que eu andava a ler os volumes destinados a adolescentes e adultos, os livros desapareceram. Só por volta dos meus quinze anos voltei a descobrir esses volumes, escondidos na última prateleira da despensa cá de casa.

Olhando hoje o meu dossier, os meus desenhos e composições, quase chego a emocionar-me. É verdade que dava muitos erros, tinha a letra feia, mas uma imaginação excelente, divertida e, pelo que escrevia, devia ser uma criança bastante sensível… Os erros, esse pagava-os repetindo a mesma palavra dezenas de vezes.

(Continua)



[i] A crise dos anos 70 que assolou a Europa ainda não tinha chegado verdadeiramente a Portugal. O nosso país vivia o auge de uma verdadeira democratização do ensino, conquistada depois do 25 de Abril, com uma subida exponencial de licenciados nas Universidades Públicas oriundos de classes sociais mais desfavorecidas, ultrapassado que estava o modelo de elite social e cultural. As famílias dos operários nas grandes cidades faziam todos os esforços possíveis para manter um filho na faculdade, oportunidade única para subir na pirâmide social. A ideologia socialista da época tivera por seu turno uma importante influência no sistema de ensino, substituindo e afastando professores associados ao regime do Estado Novo, o que na prática significou a substituição de uma ideologia por outra. Mas o sistema de ensino é isto mesmo em todos os países do mundo. Alimenta e faz respeitar, uma certa ordem social, económica, política e cultural (BARROSO J. 1996).

[ii] Não me prejudicou grandemente esta minha recusa em aprender fora do contexto escolar. Talvez tenha sido sorte, ou talvez demonstrasse apenas a minha recusa em deixar de ser criança já que contra a escola eu não tinha nada; bem pelo contrário, creio que eu legitimava a escola como única responsável pelas minhas aprendizagens. Como afirma Freinet (1978) “Nada de aprendizagem prematura, dir-vos-á o caçador. Um cão novo demais fatiga-se e desencoraja-se. As suas reações e o seu faro correm o risco de ficar perturbados para sempre.” Olhando para as crianças dos nossos dias e em particular para os filhos dos casais amigos eu penso muitas vezes na disciplina que desde os dois anos de vida (às vezes mais cedo) é incutida àquelas crianças. Não podem mexer, não podem brincar com canetas, não podem sujar a roupa. Aprendem os números e as letras na pré-primária e chegam a ser avaliados. Uma avaliação de tal forma prematura que muitas vezes, ao invés de motivar as crianças a aprender, termina muitas vezes na revolta contra a escola e contra os professores. Penso isto e associo ao relato (lido na aula pelo Prof. Rui Canário) daquele jornalista que falava dos filhos que deixa no infantário antes de ir trabalhar, que, ao mesmo tempo que questiona a avaliação precoce dos miúdos não encontra, na sociedade atual, outras alternativas, já que os pais trabalham e os avós também…

[iii] Demonstração clara quanto à forma e organização escolares pela maneira como é concebido o ciclo da aprendizagem, passando para segundo plano as experiências e conhecimentos pré-adquiridos de cada aluno; tentando fazer corresponder à mesma idade um determinado perfil de conhecimentos e rejeitando outliers uma vez que estes são entidades estranhas à norma. (CANÁRIO R. 2001). A tecnologia da classe pressupõe a homogeneidade da turma e a conformidade dos estudantes (BARROSO J. 1996). O pedido desta mãe no sentido de a filha passar diretamente para a 2ª classe irritou claramente a Diretora da Escola que se terá sentido desautorizada. Uma coisa é certa: a criança em questão era verdadeiramente boa aluna e estava de facto adiantada face aos seus colegas de classe. Não sei ao certo como correu o ciclo preparatório da Catarina mas ela acabaria por abandonar a escola antes de completar o 9º ano de escolaridade.

[iv] Típico do sistema de ensino profissional a aprendizagem através de constantes correções até chegar ao efeito/conhecimento ou excelência pretendidos.

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