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quarta-feira, setembro 28, 2011

Autobiografia escolar (Parte III) O Currículo Oculto

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Com dez anos eu já tinha a certeza do que queria ser: professora de Português ou de História. Pois… é que entretanto eu já sabia que para ser médica ou enfermeira teria de ser uma excelente aluna a matemática…

Com dez anos eu era suficientemente autónoma para deslocar-me à escola sem a companhia de um adulto, inclusive, fiz a minha matrícula sozinha pois o meu pai não pôde acompanhar-me[i]. Fui colocada na Escola Preparatória de Alfornelos e desta vez ia com muito medo de não conseguir adaptar-me. Parecia-me muito difícil… como lidar com tantos professores e tantas disciplinas? Como saber o que esperar dos professores e saber o que tantos professores diferentes esperam de nós? Sendo estes os meus principais receios, a realidade que encontrei mostrou-se bem mais complicada… Na altura, os pais não podiam escolher as escolas. As matrículas teriam de ser feitas segundo a área de residência dos alunos e eu pertencia definitivamente a Alfornelos, apesar das tentativas falhadas de matrícula na Escola Preparatória Roque Gameiro. Nenhum dos meus colegas da escola primária havia ido para aquela escola. Eu fui colocada numa turma maioritariamente de repetentes. À exceção da Carla, que viria a ser a minha melhor amiga (uma amizade que dura há mais de vinte anos) todos os colegas, rapazes e raparigas eram mais velhos que nós. Recordo-me que tinha colegas com 13 e 15 anos nos 1.º e 2.º anos do ciclo. Na altura, o sexto ano era a escolaridade mínima obrigatória pelo que estes jovens ficavam retidos até completarem o segundo ciclo ou na melhor das hipóteses poderem desfrutar de uma passagem administrativa por causa da idade.

Lembro-me de pouca coisa deste período escolar, assim, tive de recorrer à minha amiga Carla para me ajudar a recordar alguns pormenores. Infelizmente, a memória da minha amiga também fraquejou neste sentido…ainda assim, recordo que eu e a Carla éramos simultaneamente as mais novas e melhores alunas da turma. Olhando hoje para aquele contexto, tenho dúvidas se as nossas notas se prendiam com um coeficiente de inteligência superior ao dos outros colegas… Na altura estava em vigor uma filosofia que pretendia combater o insucesso escolar. A lógica era juntar alguns alunos com bom aproveitamento a alunos de aproveitamento insuficiente para estimular a aprendizagem e motivação da maioria do grupo. Foi nesse contexto que eu e a Carla fomos integradas naquelas que eram apelidadas as “piores turmas da escola”. Naturalmente, duas crianças que nunca tinham sido repetentes, assíduas, pontuais e respeitadoras das regras e sem dar problemas ao nível da disciplina, acabariam por, de alguma maneira, cair nas preferências dos professores[ii], bem como seriam apelidadas pelos restantes como marronas.

Em termos de relação pedagógica recordo apenas uma pequena conversa que mantive com a minha professora de português, Hélia Correia. Ao descobrir que tinha uma professora escritora perguntei-lhe se poderia ler um livro dela e não entendi a sua recusa quando afirmou que eu não deveria ler os livros dela porque eram livros para adultos. Pois se eu li a coleção completa da vida sexual aos seis/sete anos de idade, porque não poderia ler os livros da Professora Hélia Correia?? Não lhe disse isso, é claro. Fiquei calada e pensei: um dia terei idade e talvez até escreva um livro!

Recordo ainda que a disciplina que eu menos gostava era a de Trabalhos Oficinais. Era excelente aluna em Educação Física e destacava-me no futebol e no basquetebol, para o qual contribuía a minha estatura física, bastante desenvolvida para a idade. Aparte disso, a matemática fez-se com dificuldades mas com sucesso.

E o que se passava com a maioria dos alunos da turma? A maioria, como foi já foi referido, tinha entre 13 a 15 anos, oriundos de famílias de um nível socioeconómico muito baixo. Algumas crianças viviam no limiar da pobreza. Diversas vezes dividi o meu lanche. Algumas vezes roubaram-me as senhas de almoço. Moradores dos Bairros das Fontainhas e da Azinhaga dos Besouros, paredes-meias com a escola, entre Alfornelos e a Pontinha; jovens com uma taxa de insucesso escolar elevadíssima e, embora não fosse a maioria, grande parte dos meus colegas era de origem cabo-verdiana[iii]. Vários/as colegas da minha turma já fumavam e alguns fumavam haxixe. Eu não sabia que era haxixe… para mim era droga e não poderia, nem saberia, distingui-la de qualquer outro tipo de droga. Costumavam fumar atrás do pavilhão de ginástica e faltavam muito às aulas. O sexo prematuro era também normal entre a maioria daqueles jovens. Sei de todas as histórias que duas das minhas colegas mais velhas me contavam em jeito de tu és burra... não sabes nada[iv]. Os namoros delas faziam-me alguma confusão… para além de sexualmente precoces relacionavam-se com rapazes muito mais velhos, de 18 e 19 anos, que as esperavam à porta da escola. Durante os dois anos que estive na Escola Preparatória de Alfornelos, hoje Escola Básica 2/3, houve um caso de gravidez entre uma das crianças… ela tinha apenas 10 anos, mas não era da minha turma. No segundo ano do ciclo, não sei por que razão, a minha amiga Carla mudou de turma e eu fiquei muito triste. A nossa amizade manteve-se, íamos juntas para a escola, por uma longa estrada que na altura nada mais tinha do que um pequeno e estreito passeio, rodeada nas bermas por campos desertificados, junto à Quinta da Falagueira. Contudo, foi neste período que me aproximei mais das minhas colegas de turma mais velhas. Às vezes ia almoçar à casa de uma delas que ficava nas Fontainhas e foi nessa altura que conheci os bairros da Venda Nova. Foi nessa altura também que me terei tornado uma pessoa mais tolerante. Afinal, apesar de viver numa família humilde, eu era considerada rica e betinha pelos meus colegas que viviam em bairros degradados, em quartos improvisados entre o espaço de uma sala e um sítio para cozinhar. Eu vivia numa casa de betão, na Falagueira, vestia roupas vistosas e não me faltava o lanche, nem as senhas de almoço. Não me lembro do nome destas duas colegas com quem me relacionei no segundo ano, mas sei que as duas deixaram de estudar quando completaram o ciclo (na altura a escolaridade obrigatória), uma casou aos 15 anos e a outra, a última vez que soube dela, tinha um grave problema de toxicodependência. Eu não me perdi… fiz o ciclo preparatório e aos 12 anos cheguei à Escola Secundária da Falagueira.



[i] Os meus pais tal como tantas outras famílias atuais não tiveram uma posição verdadeiramente presente durante todo o meu percurso escolar. Creio que no entender dos dois eu estava bem entregue aos professores e à escola que encaravam como os quase exclusivos atores responsáveis pela minha aprendizagem, para além de mim própria. Assim, bastava que me vissem fazer os trabalhos da escola e que no fim de cada trimestre eu apresentasse avaliações positivas.

[ii] Por outras palavras nós éramos as clientes ideais da classe docente e da escola (BECKER cit. GOMES C. 1987).

[iii] Será que é correto partirmos do princípio que um aluno oriundo de uma classe desfavorecida é sinónimo de aluno problemático, indisciplinado e condenado a reprovar sistematicamente? (CANÁRIO R. 2003). A experiência diz-me que não é determinante. Mas o contexto social e familiar poderá provocar o agravamento ou não do aproveitamento que é esperado dos alunos. Não poderão a escola e os professores desempenhar um papel determinante para inverter as situações menos positivas? Não estaria a maioria dos professores daquela escola, à espera que um cabo-verdiano da Azinhaga dos Besouros ou das Fontainhas, chumbasse o ano? Neste contexto em que a escola está inserida (ainda atualmente), não serão os professores altamente influenciados pelo efeito de Pigmalião, esperando que se concretize exatamente aquilo que imaginaram ou idealizaram?

Serão os professores imunes às considerações que o efeito de pré-informação por parte de outros docentes possa provocar, mesmo antes de conhecer uma turma ou um determinado aluno? A experiência, sobretudo como formadora, diz-me que não. Agora, será necessário que a classe docente consiga ultrapassar a profecia de estilo Murphiano segundo a qual tudo o que pode correr mal corre mal com toda a certeza. E como ultrapassar esse estigma afeto a um determinado perfil de estudante? Não permitindo que os estereótipos tomem conta de nós e nos impeçam de olhar a realidade tal como ela é, envolvendo os alunos, os pais e a comunidade educativa; levantando as necessidades especiais, concretas e únicas de cada indivíduo e trabalhando sobre e para as pessoas e não para os grupos - talvez… Parafraseando o Professor Rui Canário, deixando de encarar o aluno como mero objeto pedagógico.

A própria metodologia de ensino é concebida tendo como ponto de partida o perfil do cliente ideal (BECKER cit. GOMES C. 1987). Quando surgem alunos que fogem ao padrão de aluno ideal os métodos e a forma de transmissão de conhecimentos habitualmente utilizados pelos professores, são colocados em causa e perante a falha na prossecução dos objetivos alguns professores não sabem como reagir, adotando em muitos casos, posições de descrença e por vezes de conflito com os alunos em questão, fazendo uso da autoridade e legitimidade que o sistema lhe confere.

[iv] Inquestionavelmente aprendi muito sob esta forma de currículo oculto informal, passado entre os alunos. Durante o ciclo, nunca tivemos Educação Sexual. Só na secundária assistimos a umas conferências e ações de sensibilização subordinadas ao tema da sexualidade e planeamento familiar. Cá por casa, havia livros que permaneceram escondidos até aos meus 16 anos e ninguém falava de sexualidade. O Professor Walo Hutmacher (1992) descreve desta forma o conceito de Currículo Oculto: “tudo o que acontece naturalmente na escola, o que há de mais evidente, de mais comum e tradicional, o que se tornou tão familiar que já não nos chama a atenção. Outros autores classificam o currículo oculto como: “resultados da escolarização não previstos ou não pretendidos explicitamente, subproduto do currículo académico, conjunto de fatores modeladores de aprendizagens não académicas e não mensuráveis nos alunos, contexto social no qual tem lugar a escolaridade, e que implica que os alunos alcancem modos de pensar, normas sociais e princípios de conduta, dada a sua prolongada exposição a esse ambiente.” (GONÇALVES M.F. 1997). Por sua vez, o currículo oculto passado pelos educadores e professores, inclui diversos valores; por exemplo: religião, preconceitos de cor e de classe, regras de comportamento, etc. que a escola pode ensinar, mesmo sem mencioná-los em seu currículo.

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