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domingo, setembro 18, 2011

Autobiografia escolar (Parte II) O puxão de orelhas

A presente autobiografia escolar foi elaborada em 2005 no âmbito da Licenciatura em Ciências da Educação, U.C. de Sociologia da Educação, sob a orientação do Professor Rui Canário. Obviamente, todos os direitos são reservados.

Eu gostava de tudo… de Português, de Meio Físico e Social e, até certo ponto, de Matemática. Não me custava fazer ditados, cópias de textos ou composições, contudo, o meu aproveitamento a Matemática foi profunda e definitivamente abalado no terceiro ano do ensino básico. Um problema de saúde e um internamento hospitalar durante quase um mês, foi o suficiente para eu nunca mais recuperar nessa disciplina. O mês que estive ausente foi um mês de grandes avanços no programa de matemática e eu fui incapaz de recuperar. Todos aqueles problemas com contas de multiplicar e de dividir eram demasiado confusos e chegando ao final do primeiro período a professora não podia voltar atrás para me explicar toda a matéria que eu perdi[i]. A professora sugeriu então que eu tivesse apoio com alguma explicadora mas infelizmente os meus pais não podiam suportar essa despesa. A minha mãe conhecia os números e não se atrapalhava nas contas mas não sabia como explicar-me e o meu pai (…) como encarregado de educação só queria ver as notas no fim de cada trimestre e assinar os testes, certificando-se que o meu aproveitamento era positivo. É claro que por diversas vezes o meu pai me acusava de não estudar o suficiente para matemática… mas eu simplesmente não conseguia e terá sido aqui, descobri agora, que terá nascido a minha aversão aos números.

Quanto ao comportamento, sempre fui uma aluna quase exemplar. Constam nas folhas das minhas avaliações alguns adjetivos como faladora, mas sempre interessada e trabalhadora. O facto de falar demais valeu-me um belo puxão de orelhas… algo que me doeu muito e que fez a professora arrepender-se da atitude que tomou. É que nesse dia eu estava com uma otite e aquele puxão de orelhas doeu-me bastante, de tal forma que não consegui controlar o choro. Ao aperceber-se do sucedido, a professora Elsa ficou muito aflita e pediu-me desculpa… Foi também a primeira vez que fui repreendida daquela maneira, como tal, doeu duplamente. Os castigos da professora Elsa nunca iam além do puxão de orelhas e das orelhas de burro. O Vítor, o tal menino que chorou no primeiro dia de aulas, era quase sempre a vítima das orelhas de burro por ser muito brincalhão e distraído. Era portanto, motivo de chacota por parte de toda a turma (éramos uns trinta), sempre que ficava de costas viradas para a turma, nariz de frente à parede e orelhas de burro feitas de cartolina. Apesar desses repetidos episódios, o Vítor era querido por todos pois trazia os melhores, maiores e mais bonitos bolos de aniversário. O pai dele era pasteleiro. De resto, a professora tinha um ponteiro de madeira enorme, parecido com um taco de bilhar, mas felizmente esse ponteiro só servia para sinalizar o que estava escrito no quadro.

Da organização da sala e da escola pouco recordo… Lembro-me que utilizávamos muito papel pardo, o mesmo que era usado na mercearia (para embrulhar alguns consumíveis) e que à hora do lanche nos davam um pacote de leite com chocolate. Ao fundo da sala amontoavam-se paletes de leite com chocolate perto das estantes e armários onde era guardado o material escolar. Da sala do primeiro ano não me lembro de nada em especial, mas recordo que a sala onde estive do segundo ao quarto ano tinha um estrado, em cima do qual estava a secretária da professora e por cima do quadro preto estava um crucifixo[ii]. Só mais tarde, viria a compreender a razão daquele crucifixo e daquele estrado. Na altura, tudo aquilo me parecia perfeitamente natural.

Eu não me importava de ser chamada ao quadro, desde que não fosse para escrever a tabuada ou resolver problemas, de modo que nas horas de matemática eu tentava sempre portar-me muito bem e não dar nas vistas.

Em 1984, terminava um ciclo da minha vida, de todos os meus colegas e da professora. No último dia de aulas da quarta classe, fizemos uma festa e todos sem exceção choraram, inclusive a professora[iii]. Para mim esse dia foi muito difícil. Significava não só o adeus aos meus colegas e amigos de classe, como o adeus a uma professora que me acompanhou durante os quatro anos mais importantes da minha vida - os anos em que aprendi a ler e a escrever, que fiquei a conhecer um pouco mais de mim e do espaço em que vivia. Era chegada a altura de partir para uma nova escola, um novo mundo, com muitas disciplinas e vários professores. Algo de muito especial nos ligava à professora Elsa e ela ficou para sempre na minha memória como uma figura definitiva, inclusive na formação do meu carácter[iv]. Lembro-me como a professora Elsa se emocionou quando pela primeira vez nos explicou o que era o 25 de Abril. Nos anos 80 essa memória estava bem presente na mente das pessoas, para o bem e para o mal… No caso da professora Elsa, essa era uma memória feliz. Em casa, o meu pai reforçou a mesma ideia e pendurou na sala o diploma que a Câmara da Amadora ofereceu às crianças do Concelho que participaram no concurso de desenho sobre os 10 anos do 25 de Abril.



[i] Destaca-se neste aspeto a dificuldade presente em muitos dos professores na gestão das diferentes aprendizagens bem como na gestão dos casos de insucesso. Por outras palavras, o grupo é grande, a matéria foi dada e o programa tem de ser cumprido.

[ii] Resquícios da Ditadura que havia terminado poucos anos antes.

[iii] Essa relação social inédita, que surgiu com a invenção da classe, funcionou na perfeição. Funcionou a relação pedagógica e os seus canais de comunicação (CANÁRIO R. 2001). Nunca houve notícia de uma queixa contra a professora e a minha primeira classe, que me acompanhou até aos dez anos, funcionou como uma forma de socialização com outros miúdos bem como proporcionou o contacto com outras realidades diferentes daquelas que conhecia na minha casa, na minha rua e no meu bairro.

[iv] Posso afirmar sem qualquer dúvida, que a Professora Elsa conseguiu cumprir na íntegra, pelo menos no que me diz respeito, a missão que a escola lhe atribuiu de me formar para a cidadania. Esta é aliás, uma das missões do sistema educativo contemporâneo (CANÁRIO R. 2001): A formação do saber estar e do saber ser, vivendo no mundo em verdadeiro gozo da cidadania. Será também por essa razão que nos programas do 1º ciclo nos são entregues tarefas tão simples como escrever um telegrama ou um aviso de receção dos correios. “A escola, enquanto organização social induz nos alunos a aprendizagem de um conjunto de competências suscetíveis de mais tarde serem transferidas, ou recontextualizadas, para outros tipos de organizações sociais em que se integram os adultos” (CANÁRIO R. 2003).

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